quarta-feira, junho 10, 2009

Anatomias de liberdade

Chove lá fora, como agulhas pontiagudas lançadas do céu. Às vezes ela pensa que alguém acorda, lá do alto bem alto - no fim de um paradoxal infinito vertical- abre a janela e começa uma rumba de tiros ao alvo cá para baixo. Não vê nada. E em vez de pequenas gotas, envia ponteiras de água para se vingar. Por isso, as árvores vergam-se para as deixar passar, mesmo sedentas. Habitadas por pó, fumos, rejeições e intempéries, que as esfacela. Abdicam do vento. E enrolam-se umas às outras no esforço contínuo de viverem mais um pouco agarradas aos galhos.

Agora, as janelas das casas assobiam com rajadas de ares que trespassam os tecidos de Inverno colados aos corpos impreparados e arrepiados como rugas de pele de galinha. Eles não reparam. Olham-se. Engasgam palavras. Cada um mergulhado em silêncios abstractos. Deixam passar. Lá fora, milhões de formigas humanas, passam ininterruptamente agarradas aos casacos impermeáveis, como salvação do frio que esgarça a réstia de calor. Ouve-se o tilintar das chávenas. Os passos arrebatados na calçada. A máquina de café em som locomotiva –a-vapor.

– Todas histórias de amor deveriam ser breves.
- Como assim?
- Princípio, meio e fim.
- Mas isso tiraria os efeitos secundários.
- Por isso mesmo, não deveria haver. Já não temos idade para isso. E deveríamos saber quando seria a hora de deixar ir. Até que outro vício nos arrebatasse a alma.
- Beauvoir e Sartre viviam assim, separados, não só por princípio, mas porque não queriam ficar “estranhos” ao amor. À sensação de liberdade. Ou seja estrangeiros à vida.
- Nunca tinha pensado nisso. Mas não é disso que falo. Quero dizer: mais do que liberdade. Uma certa leveza que as histórias independentes nos dão, antes de se tornarem comuns. Com a idade deixamos de ter paciência para as histórias em comum e apenas nos satisfazemos na autonomia de um e outro, para cruzarmos, por vezes as experiências, as singularidades e, claro, aquilo que nos une. Como curiosos pela anatomia do outro.
- E à medida que deixares ir, vais agregando.
- Claro! Há dezenas de pessoas que te enchem a alma e que por decoro social não te permites estender a elas.
- Goethe falava disso ao falar do jovem Werther: “Nada melhor do que uma alma que se estende a nós”.
- Mas Werther era escravo da obsessão. Esses amores arrebatados são pesados e não libertam. É ainda mais sobre aquilo que dizes: quantos não se estendem a nós? Vê lá. Quantas pessoas já se estenderam a ti? Como se fossem, realmente, parte de ti?
- Três.
- E no final?
- Nenhuma.
- É isso. Perde-se a leveza com o desgaste. Não estamos ainda preparados para reinventar a paixão. E é nessa liberdade que nunca chegaremos lá. O encantamento é um vício que só se vive um momento em cada história. Se descobríssemos como reviver isso sem efeitos secundários, seríamos mais leves.
- O problema é que tudo é líquido. Não estamos preparados para partilhar. O que dizes é uma tentativa de fugires de ti.
- Nada! É a minha curiosidade pelos outros, e de achar que há sempre mais para viver. E que não temos de ficar presos a nada, a não ser à nossa liberdade de viver e olhar, exactamente como estamos preparados para ser.

O guardanapo voou. Caiu na calçada. Em segundos embebeu-se de chuva, que nunca tinha provado. Em segundos os passos apressados desfizeram-no. Em segundos respirou e voou. Viveu efémero. Um fôlego. Um rasgo.

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