segunda-feira, junho 14, 2010

Eva-Desassossego

Podes empacotar tudo, menos o turbilhão. Vá, Eva. Como se embala um turbilhão? Não brinques com coisas sérias. Há fogo a arder e podes queimar-te. Ainda que devagarinho podes queimar-te, como quando arriscas pôr a mão nele por pessoas que juravas a pés juntos poder confiar. É assim que te podes queimar, lentamente, até graus irreversíveis para a derme. Sobretudo a interior. Há danos que se tornam irresgatáveis. E isto lembra-me o dia em que conheci a Eva. Culpo-me, hoje, pelo estado dela. 

Eva estava sentada num banco de jardim no Palácio de Cristal. É. Conheci-a no Porto. Sobretudo na época em que frequentava bibliotecas. Às vezes tenho saudades do tempo em que frequentava bibliotecas. Era mais serena e a vida parecia-me um pêndulo que fazia as vezes de um colagénio da pele. Flexível e com o sábio reajuste das gavetas na nossa cabeça, que vão juntando compartimentos de sabedoria. Há uma certa sapiência na arte de bem gastar o tempo em bibliotecas. Imitamo-las, como depositárias de boa e consolidada memória. Queremos ser elas. Estender-nos às prateleiras, como se nos pudessem folhear.

Foi aí que me comecei a apaixonar por ela, e ao mesmo tempo a traí-la. Ao raio da memória. A Eva pareceu-me o oposto disso. Uma mulher sem a memória. Franzina, tontinha, aérea e com a dose inevitável de uma imaturidade sincera. A vida ainda não lhe tinha dado o suficiente para que percebesse. Fosse lá o que tinha de perceber. Subestimei-a. Faço-o constantemente. Quando nos fazemos o mesmo, caímos no pacato e corriqueiro erro de fazermos exactamente semelhante exercício com os outros. Subestimei-a de tal forma que não lhe vi o livro nas mãos. Era o "Livro do Dessassossego" do Bernardo Soares. Folheava-o delicada e atentamente. Havia naquele olhar dela, aéreo, qualquer coisa de magnético como se roubasse palavras às páginas. Aquele folhear e olhar parecia deixar as páginas daquele livro em branco. O mesmo que o Bernardo fazia comigo. Um curto-circuito. Tábua rasa, reduzindo-me à pequenez de um vazio.

Depois inquietei-me: de onde é que ela conhecia o Bernardo? Levei aquilo tão a sério que nem me apercebi que não podia dizer-lhe que conheci o Bernardo. Ela não iria acreditar. Como iria explicar-lhe que conhecera uma pessoa que morrera antes de eu nascer. Sim, a tontinha, pensaria ela, só poderia ser eu. E, ainda assim, era a mais pura verdade. Cristalina como a água destilada de passar a ferro. E passo tantas vezes a ferro os pensamentos da minha tábua de esticar sentimentos, que me esqueço que com o uso a pureza vai-se.

Estico-os. Enrugam-se, mas lá vou eu estendê-los ao comprido, prender-lhes as pontas na borda da tábua para maior precisão; borrifo-os e tudo se suaviza a água quente, destilada, cristalina, sincera. Água em estado puro. Tal como o segredo que carrego. Sim, Eva. Eu conheci o Bernardo Soares. E esse livro, mulher, vai levar-te ao abismo: desses de danos irreversíveis. Olha o lodo em que te podes meter se o levares a sério. Ele não era um homem fácil, sei-o. Esse abismo, esse medo, essa vertigem, esse lamaçal de sentimentos em violenta areia movediça vão fazer mossa. E que mossa! Entender a vida como uma série de equívocos mal resolvidos e trazê-los ao prato do dia, causa indigestão crónica. Isso vai-te subir à cabeça. Causar suores frios, arrepios que ardem. O Bernardo não te vai fazer nada bem. Não tens espinha para ele.

Eva, já te foste. Ouve-me. Esse livro é um tratado sobre o turbilhão da alma humana, em auto-análise acto contínuo. Riste-te. Não me levaste nada a sério. Nem percebeste nada do que quis dizer quando te disse que ainda falo com o Bernardo. Há ele em mim, que me torna menos fácil, e mais desassossegada.

Para ti tudo se pode embalar. Mesmo o desassossego. Não sei como o fazes; ou parece conseguires fazer. As malas que carregas entre uma cidade e outra levam sempre sentimentos. E tu levas-te lá sempre diferente. Pois, Eva. É verdade. Há sempre as chamas violentas que te vão queimando e tu ignoras. Depois vem isso. O turbilhão. E tu lidas assim com o turbilhão como se o pudesses empacotar. Não, Eva. Já é tempo de saberes e de eu te contar que o Bernardo fez um tratado sobre o turbilhão para poder suportar melhor a vida e um não-ele. Ele não era ele, para ser mais um pouco e poder aguentar as dores das dobradiças das portas que se fecham. Ele fez um tratado como deve de ser. Foi por ele que te tornaste assim. Ele agora também te tem.

Tem-te a arder de febre por essa água quente do ferro que tentas manipular, enquanto na tábua há trapos. Trapos Eva. E quando há trapos assim, foge-te o ferro para a mão que o segura, quando tentas estendê-los ao comprido. É Eva. Assim podes queimar-te. Mais valia não teres conhecido o Bernardo. Ele agora há em ti. Estás preparada para o desassossego, acto contínuo.

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