segunda-feira, fevereiro 21, 2011

Cartas da Hilda

Os estados abruptos desta mulher que vive a mil rotações são um paradoxo. Ora desejamos viver tanto como ela, ora nos enternecemos, ora angustiamos com as ansiedades dela, ora não queremos, nem por um segundo, estar na pele do que possa Hilda ser. Um misto de Virgínia Wolf com Clarice Lispector, onde, certamente, haverá ainda, um dedo de Hilda Hilst. 

Abri de manhã o e-mail. Ela escreveu-me. Tem-me escrito todos os dias. Houve a Hilda Furacão, sabemos, essa mulher arrebatada de vida, na vida, a fulgir dela, na sedução contínua de luxúria e homens. Também gostaríamos de ser um pouco como ela, mas falta-nos coragem. Há-de ser coragem, sei lá. A monogamia, parece, é uma treta. Os olhos dos outros dizem-nos tudo. A Hilda contou-me que todos os amigos lhe contam que não faltam escapadas de fim-de-semana, ou aventuras. Ou haverá a pornografia (e sobre isto a Hilda também me escreveu, a pedir conselhos). Ela consegue ser mais fiel do que os homens dela. A Hilda! Sobretudo aqueles que se queixam de que as mulheres não os compreendem. Faltar-lhes-à  um pouquinho de sensibilidade. Dizia, a Hilda escreveu-me. Omito algumas partes e passo ao essencial:

"Eu não sei pensar. É uma bestialidade, assim, quando o pensamento se dá em espasmos e tentamos controlá-lo a ver se lhe desvelamos alguma coisa. Uma coisa que seja. Vão. Em vão. Há-de haver uma saída, mas só labirintos surgem pelo corredor. Temos sempre de escolher pelos labirintos. As portas estão fechadas. E sempre que tento abri-las ocorre-me olhar para o molho de chaves que tenho na mão. Elas chacoalham e não as decifro. Eu não as decifro. Parece uma charada e hei-de ver a Alice, o coelho apressado, o relógio, e o gato que ri, mas nunca encontrarei a geografia da maravilha. É o espanto que resiste. A maravilha é o espanto da nossa fantasia. Eu vejo as portas e sei que nenhuma delas me há-de levar, lá, onde quero."Há-de haver uma saída", penso. E, enquanto penso, vem-me o labirinto, como se fosse uma composição barroca. 

Mas, Van, eu não sei pensar. Não sei. Como se pensa? Não podes dizer-me porque o labirinto de ti é muito diferente do meu. Eu não acredito nos meus padrões mentais. Esta cultura. Esta coisa arraigada de sermos assim porque fomos influenciados pelo enredo ao redor. Olha só: o enredo ao redor. Um labirinto. Outra bestialidade. Eu não sei pensar, ou os pensamentos são sempre miríades das possibilidades que temos. Depende da geografia. E onde queremos chegar? Onde queremos chegar? Também não sabes. Eu sei. Mas lê-me. As hipóteses que temos. Porque não escrevo eu sobre coisas banais e me debruço, agora, sobre que não sei pensar? Se soubesse, haveria de encontrar uma saída. Há homens tão pequeninos que as encontram e vêem logo. Mas quanto mais vemos, menos sabemos, e mais queremos saber-lhe. Mas ficamos sempre demasiadamente anestesiados para decifrar. Para reagir. Pois, turva-se-nos tudo. Até no labirinto vemos nevoeiro. 

Van, isto assim não pode ser. Havemos de encontrar uma saída juntas. E que eu não sei pensar é uma bestialidade. Vês? Não achas que devíamos ter uma dessas pastas de arquivo computorizadas para que as pudéssemos procurar com um simples "find"? Assim não nos perderíamos, jamais, no labirinto. As portas  mais importantes abrir-se-iam. Quando espreito pelos buracos está sempre escuro. E as portas entreabertas já as conhecemos. Queremos ir, sempre, um passo depois pelas portas trancadas. Quero parar e nunca consigo. Até que vem a taquicardia: o bacanal do coração. E já não vemos as portas, as chaves, o corredor, nem o labirinto. Eu sei que não sei pensar, já mo disseste, não é uma bestialidade?"

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