domingo, março 13, 2011

A sinfonia de quase chegar


Começou com um grunhido quase inaudível. Um lamento baixinho, no barulho da rua, dos passos, das buzinas, dos pneus em asfalto molhado. Quem quisesse ouvi-lo teria de se desabituar, por instantes, aos vícios que a rua nos habituou, enganando a audição. Ele vem, chegando a nós, sempre à mesma hora. Quase a chegar às oito, à noite. Quando a maioria está quase a chegar a casa. Quase a chegar ao jantar. Quase a chegar à cama para chegar às oito do dia seguinte. Da manhã. Da noite.

Este homem inquilino da rua chega quase-quase às oito, às segundas, às terças e às quintas-feiras, à porta da Casa da Música. Não sei se quase chega às oito nos outros dias, porque nunca estou ali. E quando não estou, ele para mim não existe, embora eu, para ele, não exista nunca. 

E ele tem vindo a chegar cada vez mais carregado, cada vez mais perto daqueles que estão quase a descer as escadas para o metro, na rotineira itinerância de quase, àquela hora, querer chegar a casa.  

Tem vindo cada vez mais perto, mais ousado, mais destemido, seguro e barulhento (aumentou o tom da voz para concorrer com a sinfonia da rua, porque percebeu que não conseguimos desabituar a audição aos graves e agudos da urbanidade, para ouvi-lo melhor). 

Primeiro, escrevi-o já, veio de voz baixa. Depois de lamento audível, pedindo esmola, trocos para comer, um galão, um leite, um molete. Já o vi de papel nas mãos, à porta daquela mesma entrada para o metro, falando de sua condição para, calado, deixar que o escrito cumpra o preceito de chegar, se calhar, mais perto aos outros, despertada a curiosidade de ler o que dirá aquele pedaço de branco a letras negras, ensaiando um resumido curriculum vitae.

Naquela entrada, certa vez, quase a chegar às dez da manhã, na sua terceira idade, também uma senhora de meias brancas de lã, dobradinhas, a chegar à fivela dos pretos chinelos, cabelo curto, escovado a pente, que lhe aparta a risca numa valsa a dois: cinzento e branco, pedia. Pedia numa caixa de plástico de cotonetes. Pedia trocos para comprar medicamentos. Pedia, envergonhada. Pedia limpa, a bondade alheia no corpo de uma moeda. No papel de uma nota. 

E ele, sujo, de barba a servir-lhe de esconderijo para o rosto jovem, o cabelo oleoso a servir-lhe de tecto. E quando o cabelo é tecto, os pés hão-de ser alicerce de uma casa imaginária, com o corpo a ser estrutura dos dias. E, com isso, nós a sermos mais do que nunca inquilinos de nós próprios. E a rua pode exigir um preço muito alto, demasiado, pelo uso dele, nela. Ele pedia e evoluía na aproximação alheia. 

As mãos enfarruscadas. As unhas ainda mais tisnadas. O odor azedo. O lamento desesperado. A mão estendida. O sobretudo verde-musgo, acastanhado, rasgado nas dobras, sem bolsos, de forro desfeito. Pés em botas negras, que se arrastam em direcção de quase a chegar a alguém que passa, se vencer a ousadia de pedir mais perto. Os olhos: aqueles olhos amarelados não se sabe se de qualquer doença, ou se febril de vida. 

Da última vez que o vi arrastava um caixote com ele, com os pés, com a voz, com as mãos que tentam chegar a alguém, em troca de um placebo para aquela noite. Como se a vida ganhasse novo alento com o brilho de uma moeda, e perdesse de novo, no instante em que nos despedimos dela em troca de um paliativo para uma voraz necessidade. 

Ele  quis alcançar-me, mas o meu olhar baixou, anestesiado, para o caixote, onde dobrado estava um edredão. Um edredão dobrado como síntese das telhas da casa daquele homem. Para lhe cobrir o tecto e os alicerces, caso o frio venha. Caso o frio esteja quase a chegar. 

Vi aquele edredão, num caixote que se arrastava em mãos tisnadas, e ocorreu-me pensar como poderia haver tamanha desafino humano, na Orquestra da Vida, à porta de uma estação a chamar-se Casa da Música. 

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