terça-feira, julho 19, 2011

O cheiro do ralo





O meu nome não é Johnny, muito menos Selton Mello, o grande, mas atrevo-me a evocar para título deste post o nome do filme de humor negro que levou a prosa do brasileiro Lourenço Mutarelli (vénia: gosto da escrita deste homem) à telona em 2007. Não se sentia o cheiro daquele ralo, em close-up, do escritório do Lourenço (Selton) mas quase que o podíamos imaginar. De alguma forma, já estivemos perto de um ralo assim. Estamos a vê-lo, ali. E ficarmo-nos por imaginar o sni-snif com a sugestão da imagem, neste caso, não é mau de todo. 
Pior seria caso os artistas da vanguarda cinematográfica tivessem arranjado uma forma de nos transferir o olor do filme para a sala de cinema. Por isso mesmo, fiquem descansados, o cheiro que se segue não se sente desse lado, estão salvaguardados, mas, advirto: requer algum estômago na dissecação e digestão da escatologia. 

A ela: os nossos queridos WC, em viagem. Quem não tem uma história com WC que faça a primeira descarga....Uns segundos. Pausa... 
Prosseguimos então perante o silêncio do autoclismo. 

Ocorreu-me falar sobre isto depois de uma longa conversa de fim-de-semana sobre cerveja e efeitos diuréticos. Eu sei, há melhores assuntos, mas vá-se lá entender o que se passa na nossa cabeça, once in a while!


Depois, lembrei-me que no dia de São joão, às cinco da matina, apertadinha, um dos únicos cafés abertos em Miragaia, negou-me a entrada triunfal para aliviar a sufocada bexiga. Como fosse a resposta pouco convincente, pelo olhar de gozo da anafada moçoila que se sentava no balcão do bar, proferindo um desleixado discurso com cunhado sotaque à "Puorto", veio reminiscência sobre o assunto:


- "Num pode ir?"
- Porquê?
- Num póde?
- Porquê?
- Tá abariáda!

Várias vezes ouvi este "avariado" em cafés, onde entrei, esporadicamente, para tentar obedecer à fisiologia. A nega inevitável da nossa portugalidade, e claro de um direito que assiste ao dono de deixar entrar quem lhe convier: Só pessoal que está a consumir pode usar a casa-de-banho. Ámen!

Cheguei a tomar café, água, sumos, enfim, uma série de consumos só para poder usar o WC. É um tema para discussão, mas dou-lhe um ponto final, porque estamos esclarecidos do contexto geral. Interessa o que se segue. 
Desventuras de WC, em trânsito.

Várias negas tive, também, em cafés em Munique, Alemanha, Estrasburgo, na França. Três pontinhos para outras geografias... Curiosamente nunca levei uma nega dessas no Brasil, terra de gente generosa e solidária, talvez a sociologia explique alguma coisa sobre o assunto. E, depois há isto: a saga por um WC. 
3 notas: entre a Bolívia e a Amazónia. 

1. São 5 da manhã e estamos quase de partida. É Manaus; é a base aérea da Força Brasileira. Ali ao fundo está um Caravan, avião, 10 lugares, onde passarei duas horas de sufoco, encolhida. Última estação, antes de voar: WC, check. 
Por isso, não sei por que razão, meia hora depois, a bexiga temperamental avisaria querer ser esvaziada. Coisa muita para quem adora voar. Coisa muita, para quem vê um manto verde lá em baixo com rios e igarapés a serpenteá-lo de azul barrento. Coisa muita, para quem está com desconhecidos, militares e não pode propriamente dizer: 


- Oh senhor piloto, faça o favor de encostar ali na próxima estação de serviço que a portuguesa tem de aliviar a bexiga rebelde. 


Coisa muita! Olhei para P., várias vezes, desesperada, que tentou arranjar forma de me acalmar dizendo que estamos quase a chegar e o que o melhor a fazer é não pensar no assunto! Tento. Eu tento. Mas é coisa muita, quando se tem a bexiga a rebentar. Eu vejo verde, vejo cockpit, vejo verde, sorrio, penso na viagem, olho o verde, mexo na máquina, desejo que não falem comigo, desejo que a bexiga se lembre de, como eu, pensar noutra coisa. Foram duas horas de exercício nirvana para ficar zen e não pensar. A pista está ali ao fundo, exígua, e ainda bem que mesmo assim adoro voar, adoro estar num Caravan com 6 militares, e dois pilotos experientes, com a bexiga cheia, enquanto tentamos acertar na pista. Ainda me lembro de filmar o momento e lá se foi desejo de WC, um minuto. Mal  motor pára, sou a primeira a sair. As boas vindas de Santa Maria do Boiaçu, em Roraima, foi no WC, num lento sussurrado líquido. 

2. Bolívia, 10 horas de viagem e um autocarro velho. É deserto: e é nele que paramos depois de passar Oruro, enquanto tentamos chegar a outro árido lugar, perto do Atacama, o Sal. Cinco horas depois e amanheceria. Não há WC. Há muito lixo ao redor do deserto cinzento. Há casas de adobe lá ao fundo. Estou com a Manu e mais umas duas dezenas de bolivianos e uma equatoriana louca, também, chamada Vanessa que dorme com um cobertor em cima da cabeça. Acordamos com cheiro de gente e panos velhos. Saio para ir comprar alguma coisa para comer e WC. 
Caminho. 
Há ali um Motel. Um Motel deve ter WC. Algo parecido. Bato à porta. Vem uma dessas cholitas de tranças compridas, cabello negro, e chapelito. As saias são compridas; a vida dela também já o deve ser, e a pele confirma-o, enrugada. Abriu um imenso portão para ver o meu entusiasmo. Lá ao fundo quartos. Depois, vê a minha desilusão: ela a garantir-me que não há WC's. E fica nisto:
- donde esta el coche? Donde está el coche? hã! hã? donde está? yo quiero verlo. Donde está el coche malogrado?

Eu é que estou malograda senhora, penso. WC ali ao fundo, hã, não? Motel, aqui, hã? Certo? Ficamos nisto uns 10 minutos. Chego mesmo a mostrar-lhe o autocarro, lá ao longe (grande acontecimento na região). Até que abro a mão, soles: é ela quem tira e por pouco menos de 1 euro decide que, afinal, o motel tem casa-de-banho e que posso usá-la, ali ao fundo. É ela a ver de novo o meu entusiamo. É eu a ver o entusiasmo dela: soles e bus malogrado! 

3. O deserto ainda e agora sim, o cheiro do ralo; e desta nem o Mutareli se lembraria.
Mais umas 4 horas depois de autocarro e ainda faltam 3 para chegar ao Yuni, pertinho do Deserto do Sal onde Dali se inspirou para desenhar alguns dos seus quadros surrealistas. Um deserto que é branco e que tem um monte de terra que é ilha, habitada por centenas de cactos como os da foto deste post, há-de ter a sua quota de surrealismo e nós, que a percorremos, estaremos um pouco mais próximas de André Breton. Vamos. 
O autocarro parou de novo. Desta vez paragem técnica e queremos pois um WC. 
- Qué?
Pergunta-me uma senhora, como se folheasse um dicionário à procura de uma descrição. Até que ela percebe onde queremos chegar e descreve aquilo que parece um buraco no chão; ou, segunda opção: um arbusto.

Ao redor: adobe e pó cinzento. Uma cidade fantasma e casas insalubres. Bem-vindos ao faroeste boliviano. Uma estação de comboios desactivada, lá longe, a cinco minutos, de portas fechadas. Não há cafés, as casas têm pequenas portas de madeira nas traseiras, que presumo que seja o tal buraco no chão. Rendo-me, mas a Manu fica em pânico. 


Salva-se ali, perto da estação, dois blocos de cimento com mais 2 buracos no chão (algo quase SlumDog milionário, mas um pouco menos). Enfrento a fisiologia com fervor antropológico e sugiro que ela faça o mesmo, pois ainda faltam 3 horas para o destino final, que não sabemos se será pior. Melhor? 
Ela ignora e sai à procura de um WC como se não tivesse ouvido e visto o mesmo que eu. Sigo. A minha estratégia: toalhitas de bebé, fresquinhas e cheirosas no nariz e pronto, uma história para contar. 
E a Manu ainda às voltas, até que a camioneta vem à procura dos passageiros (des)aventurados na exploração de uma casita. Ela rende-se, mesmo sem toalhitas. 


Agora que me lembro disto, que vos conto, ocorre-me uma declaração de rigor: com as toalhitas a viciar o odor a creme fofo no meu narizito não senti o verdadeiro cheiro do ralo do faroeste boliviano. Antes, assim, ao menos sobrou alguma coisa para imaginar. Vou pensar com carinho no assunto!





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