quarta-feira, outubro 05, 2011

Curar doença com vícios, terra em transe



Isto pode ser auto-análise, mas assim alivio o bolso e a cadeira do divã do psicanalista de ser gasta, por corpo deitado em associação livre. O regresso de uma viagem é sempre uma espécie de depressão pós-parto. Talvez pela dessincronia: viver a mil para passar a viver a cem há-de fazer alguns estragos endógenos embora não os vejamos. E regressar é como ouvir o silêncio do convento, por isso atiramos o corpo para a clausura, para o silêncio, auto-meditativo, ainda que isso seja uma coisa subliminar, do inconsciente. 


É, talvez, por isso, que o corpo se queixe. É ele quem mais ordena: agora vou-te dar uma gripe, com febre, tosse, dores no corpo, nos olhos, na alma, para que de castigo saibas que não podes viver a mil e que deves, por ora, viver a dez, para que, mais tarde, voltes ao cem, ainda que a alma anseie sempre o mil. E viver a mil é aquela coisa, sabemos: viver várias vidas num só dia. 


E a clausura é isto: uma hibernação forçada; uma espécie de convidado indesejado que o corpo, nosso marido machista, convida sem nos avisar. Quando nos apercebemos já está em casa, na sala, a fumar charuto (e nós a tossir), a beber whisky on the rocks, goela abaixo, (por isso a garganta dói); a dançar o funk com o volume nas alturas, às duas da manhã, (e o corpo flagela); e em devaneios delirantes com histórias de outros corpos para onde se muda como inquilino nómada, de vez em quando (logo a febre alheia que sentimos: sai desse corpo que não te pertence).

Acontece que, apesar de estar em delírio por sair de casa (e este calor não sei se é do corpo, se da rua), o que é certo é que, por ora, acho, o convidado, ainda que não tenha totalmente abandonado a casa – ainda sinto o cheiro de charuto lá em baixo – dei-lhe um antídoto muito mais potente que a doença que me quis trazer: com vícios (e essa coisa de o dicionário falar que se trata de hábitos moralmente censuráveis é semântica a reavaliar, porque há vícios que são pura fundamentação da metafísica dos costumes do Bem e do Belo). 


E os vícios, senhoras e senhoras, fazem de mim uma convalescente mais cheia. Estou por isso, mea culpa, mais viciada em cinema, música (pela agulha do vinyl), literatura e chá. Ou talvez o tempo lento seja propulsor de tamanhas dependências. Não, necessariamente, por esta ordem, mas em simbiose horizontal, complementar: talvez em posição de missionário, a quatro. A orgia artística é sempre na horizontal, para que não haja traição. 


Numa semana 12 filmes há-de ser doença; e 3 livros um problema de fome de palavras. Quantos litros de água com ervas, ignóbil me confesso neste tema; e a música anda de notas soltas, aos milhares, com um crepitar sonante de vez em quando. A contabilidade é por isso uma ciência inexacta e pouco importante quando a paixão anda solta assim. 


É melhor, portanto, voltar à cura, com o equilíbrio de evitar infidelidades artísticas, com a sétima arte, que o Terra em Transe (1967), do Glauber Rocha me aguarda. Que bela metáfora para falar do território pessoal. Play!  

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