quarta-feira, novembro 09, 2011

Sonho interrompido por guilhotina



A memória tem truques e vida própria. É um monstro tentacular, outras um polvo sem tentáculos, perdidos. E a vida pode ser uma vontade alheia quando não depende de nenhuma decisão racional, sobretudo quando a memória é esse ser que decide no que pensar, em determinado momento, mesmo que seja, por vezes, o menos conveniente. Aliás, sempre no episódio mais inoportuno. 

Podemos, por exemplo, estar na casa-de-banho num íntimo momento com a porcelana, quando nos ocorre enviar mensagem a alguém, omitindo claro, porque nada interessa ao caso, que estamos a exercitar a mais escatológica das adivinhações esotéricas, dignas de um exemplar de Patrícia Melo, qual Jonas, O Copromanta da vida. E isto apenas como exemplo: vale?

Pois estava eu de regresso a casa, a pensar no frio do corpo, e outras fisiologias e balanços do dia, quando um nome aflorou à minha memória. Mais do que o nome, um lugar específico com aquelas palavras: uma estante, que acontece ser a do meu quarto, secção Literatura brasileira, Joca Reiners Terron e um "Sonho interrompido por guilhotina". Na mouche!

Fui, então, interrompida pela lâmina cortante desse buraco negro do cérebro que me guiou até casa no impulso de ao quarto chegar e pinçar das capas e contracapas, de entre os livros tão apertadinhos - quais sardinhas enlatadas, que pode ser o mesmo que transeuntes em hora de ponta no metro a caminho de casa - esse livro que, confesso, ter folheado em 2007, em São Paulo, pela primeira vez. 

Mas, confidencio sem memória como e em que circunstâncias o dito chegou às minhas mãos, embora me recorde vagamente de o ter comprado (ou alguma editora mo pode ter enviado). Lembro, isso sim, de me ter impressionado com a capa toda nervos, que cheguei a pensar que os neurónios vistos ao microscópio devem ser olhos imensos, perscrutadores tanto quanto inquisitivos. Já me tinha esquecido deste livro e, inclusive, do nome que nele configurava. Tinha-me esquecido, mas a memória não. Cravara-o. 

Até que, num arroubo, ela toda excêntrica e exibicionista comandou o resto dos passos a casa.

O que lembro deste livro: comecei pelas badanas e tive a certeza de que todos os escritores, mas todinhos, heim, sofrem do mesmo: quem sou eu, o que ando aqui a fazer, esta coisa de escrever é uma crise existencial, os livros estão mortos, só sei que escrever para nada serve, e depois ainda inventam personagens que exteriorizem e carreguem o peso que levam e, às vezes, até conseguem fazer a catárse. 

Isto até pode ser teoria da libertinagem literária e tal, e daqui a pouco hão-de vir associações puritanas da defesa dos direitos dos escritores (a vantagem é que este blogue tem meia dúzia de leitores), qual teoria da banalidade aqui imposta, alegando que estou a tratá-los como farinha do mesmo saco (ou fermento da mesma lata...ou tinta do mesmo tinteiro, ou...) mas essa é a verdade. Escrevem como exercício e ímpeto porque não conseguem equilíbrio se não o fizerem. E disso depende uma certa leveza ou um certo peso: o reconhecimento é um antídoto para a melancolia e mesmo essa só o Amor a consegue salvar, porque a abraça.

E é isso que Terron faz neste livro, abraça uma certa melancólica dúvida desse ofício de escrever (os escritores são personagens principais) misturando várias linguagens, e salva a Literatura pelo Amor que lhe tem - porque sem ela não consegue viver. E começa por induzir-nos a um abismo: o da cegueira que pode até ser esse buraco negro da memória.

Esqueçam tudo o que sabem e façam tábua rasa a esta prosa, parece impor: "O leitor ideal é cego". E permeia o texto com delírios lúcidos. Com notas, cartas, orações, maldições. Mergulha num surrealismo. E faz um cadavre exquis; de repente. 

Ou, quem sabe, também pode escrever sob efeito de um ácido, mas mesmo para isso é preciso alguma sabedoria. Caso contrário como teríamos na página 119 algo como "O que drogas psicoactivas causam em aranhas? Nestes testes ocorreu o seguinte". (Ele e o Lourenço Mutarelli têm quase-quase a mesma escola: devem ter sido companheiros de carteira).

E seguem-se hipóteses como maconha, Benzedrina (não sei bem o que é; vou ali primeiro ao dicionário); Cafeína, sedativos... Talvez sob o efeito de literatura as doidas aranhiças, acaso soubessem ler, pudessem ter um outro efeito mensurável, porque isso sim a droga que ela é - com tantos efeitos secundários sobre escritores-, há-de ser veneno suficiente para ficarmos numa teia tão ou mais pegagosa que a de uma viúva negra. 

Eu, quando era miúda, adorava coleccionar aranhas em frascos vazios, furando o topo para que respirassem, e arrumando-os nas mesmas estantes de onde hoje tirei o Terron. Se calhar, eu já fazia uma espécie de literatura na vida real, até o meu pai resolver atirar com os frascos para verdes e vazios campos, em pânico. Ainda é cedo para saber se deva, então, voltar a apertar o livro nas estantes. Se lhe dar o destino dos frascos. Ou um descanso mais merecido na minha memória. Por agora estou na teia seguindo a interrupção do sonho por guilhotina. 

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