terça-feira, dezembro 06, 2011

Das injustiças e isso...

- “É por isso que, às vezes, me apetece fazer asneiras.”

E não disse mais nada. Quando olhámos para trás o homem indignado já não estava, como se deixasse um peso de culpa estúpida num etéreo buraco ali instalado, saindo pela porta dos fundos. A consciência tem destas coisas quando levanta o dedo invisível para a massa viscosa que há-de ser a nossa ignorância e a pressa voraz em julgar os outros. Este é um exercício de controlo e esquecemos de fazê-lo, porque os lugares de conforto estão contaminados de lifestyle, ortoépia bonita e limpinha e um certo sistema de controlo para a perfeita e eficaz lavagem cerebral. 

Às vezes, é propaganda tão silenciosa que nos convence que a espinha continua hirta. Espíritos mais avançados na douta inteligência são espontâneos na cautela. Eu ainda ando aqui a aprender a ser um pouco melhor. E, de alguma forma, aquele homem de camisola esfiapada, e barba de dias perdidos nos dedos insuficientes para os contar, com um azedume nas palavras que davam ao raciocínio uma clarividência e uma competente lucidez - em concomitância com uma certeza do fardo da injustiça leviana- era um ser superior.

Queixava-se da mulher da frente que o olhara de soslaio, à entrada. Queixava-se do homem do meio que o olhara com reprovação, ao passar. E, numa voz desmaiada, sentiu necessidade de esclarecer que ali estava de pleno direito, como qualquer um de nós, “bem-vestidos”, porque tinha o bilhete andante carregado. E pôs-se a desfiar nacos da história que faz o pão-nosso-de-todos-os-seus-dias. Esse julgamento alheio, desassisado. Recordou que, da última vez, a máquina apitara quando entrara num transporte público e que os “trolhas” que estavam no veículo o olharam ameaçadoramente, dizendo:

Já reparaste que o autocarro está parado por tua causa?”

Como não entendesse tamanha injustiça fez de conta. Até que um deles quase se virou a ele e a mulher do meio, cauta, mas observadora, vociferou favorável à sua virtude moral:

- Não foi ele. Foi um bem vestido que passou.

“O motorista”, relata o bom homem de voz cada vez mais esmaecida, cansada, e triste, mas sem auto-flagelação queixosa (porque a esta altura já todos estamos com uma mão na consciência a autodenominarmo-nos de injustos, revendo-nos na emoção daquele que fala) “ficou satisfeito e voltou a sentar-se, arrancando com o autocarro.”
O homem bem-vestido, remata, perdeu-se na multidão e viajou sem bilhete. O que o homem de barba de dias disse a seguir vocês já sabem: vide introdução.   

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