terça-feira, fevereiro 28, 2012

Por quem os lobos uivam

Eles ainda têm frio. Encafuam-se na terra para o quente, mas saem, predadores, na noite gélida, galgando sem freio, a terra invernosa à procura de saciar fome. Temem os homens, tal como os homens se inflamam de medo por eles. Aguçada sagacidade, biológica, de olhos pequenos a tudo ver. Melhor quando os homens se turvam na visão, nocturna, apesar dos grandes olhos.
E, agora, a noite pôs-se em penumbra por trás da serra. Há nuvens de geada nos galhos de carvalhos. Húmido musgo de odor terroso. Está tanto frio que os ossos se quedam, hirtos, como rijas estacas metálicas. Parece que se partem.
O raciocínio é inimigo do instinto. O instinto há-de ganhar os predadores, quando a saliva já se desmancha na boca, acometida pela raiva, acometida pelo célere estímulo animal. 
Nesta noite soltaram-se lobos e desceram um pouco mais à aldeia. 
Como batedores furtivos, camuflados, dirigiram-se ao poleiro do homem-só. O velho lento cheira a fumo de lareira e tem as unhas enegrecidas de terra, carvão. 
Ouve o estremecer das cancelas, a rangente madeira em fúria. Sabe que são eles. Sabe que mais ninguém ao redor resiste à grande ausência. E a remota existência (no Vale Silvado, numa geografia que só os antigos conhecem) deste velho sábio de brancos pêlos a resvalarem pela cara seria silêncio garantido para a invernia bramante de agora. E como estivesse certo de lobos ferozes, famintos com estômagos vazios a rugir, insiste em deixar a caçadeira atrás da porta. Em vez de tiros que ribombariam vale abaixo escolhe levantar as dobradiças da janela e deixar o gélido vento penetrar na casa aquecida por generoso e honesto fogo. Em vez de uma matança a carne que não lhe serviria para comer, solta um uivo tão mais forte do que aquele que alguma vez se ouvira de lobos em coro de matilha. Sabemos, pois, que a solidão de um homem o torna mais animal que a natureza de si. Sabemos, meus senhores, que os homens, se quiserem e puderem também uivam e uivam mais forte. 
Nesta noite, bem vejo, os lobos, assustados, reverentes ao som de um mestre que desconheciam quedam-se primeiro e saem de manso, logo depois, subindo por onde descerem, não obstante o frio antárctido que os esperaria. Um uivo assim, mais do que afugento é agonia dilacerante no entendimento coletivo. 

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