sexta-feira, maio 11, 2012

Os dedos do homem que voava no piano (e a imagem que nunca terei)

Copyright de Bernardo Sassetti
Imagem/Copyright de Bernardo Sassetti
Não sei medir a dor, mas com ele a dor era bonita, intensa, catártica. A dor de criar, de libertar a alma e a inteligência lírica, em notas de música, enquanto as cordas eram percutidas por martelos accionados pelas teclas: ora brancas, ora pretas. Acordes, deslizes no marfim, ébano, acidentes e bemóis.


Deviam ver como elas voavam. Brincavam com as partículas de luz, dançavam com a vibração, e sorriam como se dissessem que a vida é esta festa sensível e mágica de vivenciar a criação como num estado de êxtase. E o feiticeiro desta magia era o Sassetti. Neste sapateado etéreo estamos em transe, acordados, transmudando a pele para ler o mundo sensório como cortina transparente: tamisamos cirurgicamente o estímulo que nos dá. 
Elas saíam primeiro da linguagem sensorial, só dele, metiam-se nas mãos e, depois, pegavam-se às pontas dos dedos, como se a ganhar impulso para o librar etéreo. Plumoso estado; penas serpenteando a brisa, o sopro do mundo, como este, agora: perniciosamente fugaz. 

Antes de se dissiparem na orgia, as notas acasalavam, pariam filhos que, efémeros, logo percebiam que o mais importante da passagem por aqui é juntos sermos melhores do que no isolamento do ego. Elas entrelaçavam-se, voláteis e coloridas, para a melodia e, depois, livres, desapareciam. E dissipavam-se mais lentamente com a música "O Sonho dos Outros", a minha favorita. Tanta paz!

Eu sei que tudo isto é um mundo invisível, mas posso jurar que as via e com elas estremecia. Eu via os sons. Via sempre as notas nos dedos do homem, o Sassetti, que voava no piano, mesmo que ele não estivesse. E, sem asas, voava como se estivesse a solo com ele, da mesma forma que via como a cabeça dele pairava, deixando apenas a matéria, embora dentro ardesse um fogo criativo que só os génios conhecem. E eu conheci o génio numa tarde em Lisboa, no espaço do BES, na Praça Marquês de Pombal, por causa do Nelson. Fomos para uma reunião de trabalho a propósito das belíssimas fotografias a preto e branco que o Sassetti fazia. Pequenos fotogramas cinematográficos com movimento, pautados pelas texturas do PB que ele usava como se fossem notas musicais. Pautar a vida. 


Havia o si bemol que era a madeira das janelas do bairro Alto; o SOL de Lisboa, os cantos de LÁ, a sombra de SI, uma geremia, DÓ, nos contraluzes; (ma)RÉ em convulsão; FÁ no parapeito, bela e de cabelo apanhado; e um MI(o) que se impunha, ciumento. E havia Chicago, Rabat, o aeroporto, o táxi, o hotel, as imagens que não entendíamos, os auto-retratos.  


Nesse dia, ele apareceu de câmara fotográfica digital ao peito, nariz generoso, blazer coçado, desgrenhado, grisalho, onde o terno e genuinamente pueril olhar parecia destoar da figura vincada que era. Os fios dos cabelos estavam desalinhados, como se ele tivesse vento nas veias, que levava o turbilhão de pensamentos que o acometiam, em nanosegundos. Para ele, criar era biológico, como ar que respiramos, como se lhe faltasse oxigénio diário caso não o fizesse. 

Hoje o Sassetti foi-se e eu ainda não consegui enxugar o rosto. Há hiatos de tempo da nossa vivência em que nos situamos num portal entre o que consideramos a realidade e a não verdade. Uma espécie de mundo intermédio. 

Estou com as mãos agarradas a um lado e outro, mas os meus pensamentos e corpo estão na ponte suspensa entre estes dois mundos, porque, de alguma forma, ele era parte da família. Era um homem próximo, cuja vivência acompanhava. Até porque uma vez na vida dele era impossível sairmos. E, depois, ele devia-me uma fotografia: a fotografia que me tirou, sobreposta a uma outra imagem do BES Photo, exposta nessa galeria na rotunda do Marquês do Pombal. Era a imagem de uma mulher de cabelo apanhado, escuro, vestindo um xaile preto e um nariz pontiguado, esguio e metido. 


Começou a valsa das coincidências. 


Era como se eu me olhasse ao espelho, mas foi ele quem percebeu das semelhanças. Era como se, também, nesse momento eu tivesse ficado agarrada ao mundo intermédio, dentro do sensor da fotografia: o meu perfil, a minha roupa, mulher, iguais à imagem exposta. Num click, Sassetti imortalizou-me, escrevendo com luz, noutra forma de dançar com a vida, de fazer melodia, parir filhos efémeros. 


Pedi-lhe, várias vezes, "a fotografia magnífica" - como simpaticamente lhe apelidou-, mas era tanto ar naquela cabeça genial, que ele ficou adiando para quando pusesse "a casa em ordem". Cobrei-lhe a imagem, semanas depois, no mesmo dia em que fui ouvi-lo, na véspera de 25 de Abril, em 2009, quando ele tocou em Matosinhos junto com o Mário Laginha. Lembro-me da voz suave e baixa a dizer o meu nome: "Vanessa". Lembro-me do abraço e do ar desse abraço. Lembro-me do arranque dele de carro para regressar a Lisboa e do Laginha gritar: -"Põe segunda [velocidade]". Em primeira ele, o pianista louco, terno, generoso, tentava voar, sim, embora desafinasse um pouco com os pneus, porque voava mais ao piano, e eu nunca tinha visto um piano voar. Continuas aqui. Obrigada por teres partilhado o teu mundo interior connosco. Até à próxima querido Sassetti.





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