sexta-feira, agosto 02, 2013

A revolta dos livros

 A caçadora de histórias conseguiu enviar uma carta relatando o sucedido e assegura desconhecer o paradeiro. Numa Utopia distante a 28 mil e oitocentos segundos e milhares de movimentos oculares, para um sono de oito horas, começou a insurreição dos livros. A culpa é de Lis: vasculhou as estantes dos escritores, férteis em monstros, mitologias, musas e personagens ávidos de se revoltar contra aqueles que os escreveram. Como ganhassem vida, os livros reúnem-se em “Biblioniria”, ilha invisível que o próprio escritor Italo Calvino desconhece.
Ela assegura: “foi um sonho”. Porém, eles são geografia de concretização, conspirando golpes e revoluções silenciosas. 

"Lis, ouve: - 'Shakespeare escreveu que somos feitos da mesma matéria dos sonhos, p.i., podes ter aberto uma Caixa de Pandora."

O que aconteceu? Ela entrou na velha casa de Jorge Luis Borges, cujo espólio é guardado pela viúva María Kodana. Encontrou o verdadeiro Livro de Areia (1975), matéria do conto borgeano com o mesmo nome. É a obra das páginas infinitas que, tal como as partículas de areia, carece de princípio e de fim. Numa das páginas, encontrou o mapa secreto para a ilha. Lis foi sugada, movediçamente. Tentou resistir; agarrou outro livro de Borges. Levou-o na mão.
Engolida, aterrou, porém, em areia firme. Esbarrou com Homero, que tentava reescrever a Odisseia. Ele conversava com um sujeito de pala no olho. Falavam em Aravia, a Língua que não se entende. Contudo, o livro ato contínuo apagava o que o autor alterava. Dostoiévski tentava o mesmo com Crime e Castigo; Kafka com a Metamorfose. Eram milhares de escritores nessa mesma tarefa.
As páginas: enraivecidas, começaram a soltar-se: chuva de papel e areia. Escritores: olhos de espanto e mãos no ar, tentando pinçar as folhas. Lis ensaiou o mesmo, mas carregava o outro livro: História da Eternidade. Perdi-lhe o rasto.

Crónica de Vanessa Rodrigues, publicada a 2 de Agosto 2013, na pág. Bairro dos Livros, iniciativa Culture Print, no Semanário Grande Porto, em alternância com Rui Manuel Amaral, Rui Lage e Jorge Palinhos. 

Sem comentários: