domingo, fevereiro 07, 2016

Um mar de guarda-chuvas





A primeira vez que descobri a magia da fotografia foi com uma Canon analógica da família, que foi responsável, durante muito tempo, pelos momentos eternizados em dezenas de álbuns guardados hoje no armário da sala. Por isso, a minha primeira missão oficial enquanto aspirante a jornalista foi documentar os acontecimentos familiares, que não variavam muito entre aniversários, viagens e festas.

Hoje partilho menos o que fotografo, talvez porque creio que a fotografia é um olhar muito pessoal e íntimo. E fui-me apercebendo que me interesso mais pelo arquivo de outros tempos, folheando livros de fotógrafos, na esperança que essa viagem pela memória dos outros me leve a desvelar misteriosas formas de estar e ser.
Aconteceu há uma semanas enquanto folheava o livro “História da Imagem Fotográfica em Portugal” (Porto Editora), de António Sena, encontrando uma imagem de 1912, da qual me tornei visitadora diária. Nela, “um mar de guarda-chuvas numa avenida orlada por árvores” impõe o ponto de fuga para um horizonte que parece inalcançável. 

A fotografia é do conceituado fotógrafo Joshua Benoliel, que curiosamente nasceu a 13 de janeiro de 1873 [dia em que escrevo este texto] e cujo sobrenome em hebraico significa filho do sol. Essa imagem tem tanto de magnético, como de belo e assombroso. Vemos árvores despidas com galhos esguios e invernais, que aprisionam, e vemos guarda-chuvas negros, encaixados como um puzzle, que são ali o tecto de vários homens e mulheres, que aguardam a chegada de Afonso Costa, chefe do Governo Provisório da República.
Durante dias, tentei entender por que razão esta fotografia me alimentou tanto de inquietações, exercendo uma espécie de hipnose voluntária. Juro que poderia ouvir o silêncio das vidas ali expectantes, garanto que ouvi o rumorejar do vento, o beijo gélido da invernia, e uma certa esperança na quietude dos corpos, unidos num mar, como massa liquefeita em que parece materializar-se a multidão. Olho-a e percebo a atualidade deste mar de guarda-chuvas numa via pública, sobretudo porque o temporal das últimas semanas liquidou-me dois guarda-chuvas, um deles fustigado pela fúria do vento que dobrou as mais resistentes varas que conhecera até então.

Levantei a cabeça nesta peleja eu-versus-natureza e deu-se a epifania: vi homens e mulheres a lutarem contra o vento feroz, e um mar de guarda-chuvas dobrados e estraçalhados, sem salvação possível, numa rua orlada por árvores nuas. Imaginei logo tratar-se de um cemitério de guarda-chuvas, onde o vento assobiava um requiem baixinho; e recordei-me da imagem de Benoliel. Juro que fotografei mentalmente este momento, mas para já ainda não há impressoras com ligação wi-fi ao cérebro.

Crónica publicada no Porto24, a 14 de janeiro de 2016, dia do meu aniversário.

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